A alegria da solidão

Estar entre irmãos de comunidade é maravilhoso, mas mais maravilhoso é saber, que este estar não é perene, e que às vezes é possível estar sozinho, mesmo entre irmãos.

 

Solidão acompanhada

Calma, não é papo depressivo, eu estou muito bem obrigado. Amo ser Cristo Libertador e amo ser membro de vida.


Tenho consciência de que somos seres de relação, e sei que a grande maioria de nós cristãos sabe da importância de compartilhar a vida, de se viver em comum unidade com aqueles que buscam o mesmo que nós.

Estamos carecas de saber que ninguém se salva sozinho, porém, a principal relação que precisamos nutrir e nos aprofundar é a que tivemos a graça de iniciar em nosso batismo. É nossa relação com Deus que vai ordenar e direcionar as demais. Posso dizer sem medo de errar que quem tem uma espiritualidade madura, de muita intimidade com o Senhor, conseguirá ter relações profundas e maduras com pai, mãe, irmãos, esposo, esposa, filhos e amigos.

 

A fornalha da transformação

Mas para essa comum união com Deus dar certo, é necessário tempo e espaço, em outras palavras, é necessário solidão. Estar só, separado, distante fisicamente das pessoas é a definição deste pão de nossa espiritualidade em partes monacal.


O silêncio e a oração, são potencializados na solidão. Aliás, estes três elementos não se sustentam de maneira sólida sem a corroboração dos outros dois. A história de Santo Elias, Santo Antão e outros padres do deserto nos mostra que a solidão é a fornalha da transformação do nosso eu barulhento e compulsivo, no novo eu cristão, silencioso e equilibrado.


Aqui em nosso caminho formativo aprendemos a ser têmperos na solidão. Claro que estou falando de uma solidão acompanhada da presença de Cristo, e é esta a companhia que torna o estar só muito especial. Confesso que no começo é estranho, parece vazio e chega a doer, mas estas sensações iniciais são só fruto de nossas desordens. Na verdade, quem primeiro sofre com este movimento de retirada são nossos demônios interiores, porque sabem que a paz deles está próxima de acabar.


No tumulto e correria do dia, muitas vezes somos como a manada de porcos do Evangelho (Mt 8,28-34) sendo conduzidos pela legião de demônios até nossa própria destruição.
Achamos que estamos satisfeitos, e de fato estamos, mas de um monte de pecados e traumas horrendos e barulhentos, na solidão acompanhada apenas tomamos consciência disso tudo. E é através dela que podemos, se perseverarmos, iniciar a libertação.

 

Solidão é liberdade


Descobri que na verdade sempre amei ter momentos de solidão, onde me encontro comigo mesmo. Percebi na prática o que a teoria musical ensina, a separação das notas, marcadas pelo silêncio amplifica a beleza da harmonia das canções.

Vivemos em onze adultos e sete crianças aqui na comunidade de vida, mais alguns irmãos que sempre estão por aqui, e como é bom não estarmos sempre juntos. Somos livres. Amamos fazer tudo juntos, mas também amamos poder fazer tudo separados. Isso é liberdade. Não devemos nada um pro outro.


Esta semana, em uma segunda chuvosa, dedicada a todos os santos, eu pude trabalhar na pavimentação de nossa horta sozinho. O trabalho não era custoso demais e por isso não demandava ajuda. Eu poderia ter pedido ajuda. Mas não queria. Meus irmãos poderiam ter oferecido ajuda, mas não quiseram ou talvez nem notaram que eu estava trabalhando. E que maravilhoso!


Existem momentos em que o grande serviço de amor que podemos oferecer uns aos outros é a liberdade de se estar só. Dar espaço para que Jesus possa ter acesso a nós, e aos irmãos. Sem barulho, sem interrupção, sem expectativas, sem frustração, só liberdade.

 

O convívio dos eleitos


Será que acolher o outro significa não dar tempo e espaço a ele? Onde será que aprendemos esta noção tão pesada de acolher? No mundo contemporâneo onde o terceiro setor (serviços) mais cresce, por que se observa uma queda vertiginosa do amor e da sensação de acolhida? Será que não atrapalhar já não é servir? Será que poupar o irmão de sua companhia barulhenta e desinteressante de vez em quando já não seria amá-lo?


Dar espaço e tempo para Jesus, eis a meta da solidão. Somente a solidão nos ensina a sermos livres verdadeiramente e valorizarmos ainda mais as boas e santas companhias. Lembre-se das sinfonias, o que seria dos acordes, sem os intervalos de silêncio?

 

Por fim, gosto de imaginar o convívio dos eleitos, lá no céu. Fico pensando quando terei a oportunidade de encontrar os homens e mulheres que me inspiram a ser como Cristo. Todavia, sei que quando chegar nestas santas fileiras só terei olhos para Ele, o sumo bem e novamente na solidão acompanhada, serei saciado eternamente.

 

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